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Valmir Santos - Dissenso de humor

O palhaço e ator Marcio Douglas projeta na criação do solo Animo festas a crise pessoal recente com o ofício do cômico que elegeu como prioridade nos últimos 17 anos. A rigor, o trabalho de atuação iniciou há pelo menos 22 anos. O bate-papo com o público após a sessão no Centro de Estudos Teatrais, no 31° Festivale, permitiu compreender o lugar de que fala enquanto Klaus, a máscara da vez, antípoda de Mané, o palhaço que ancorou por mais de década junto à La Cascata Cia. Cômica e ao projeto Doutores da Alegria.

Klaus, decerto uma corruptela de clown, escancara o travo existencial, um ousado e intrépido cavalo de pau de Douglas. O solo Animo festas não é apenas desconstrução de imagem, mas de essência algo romântica do palhaço que alicerçou a trajetória do artista.

A assertividade o inclina à figura do one man show que conta a sequência de histórias, ou melhor, de piadas, assegurando-se ainda a condição de cicerone, de narrador que faz dos relatos um painel autoral da visão de mundo. A do criador é francamente ressentida e ele deposita nesse movimento interior o desejo de potência em radicar outros procedimentos na arte do palhaço.

O roteiro da lavra do ator foca os bastidores do trabalho de um palhaço veterano, desencantado após anos agarrado à animação de festas como ganha-pão. O convívio com profissionais ou amadores – na acepção mais nobre, a dos mestres autodidatas – permitiu a Douglas atentar às confissões de aventuras e desgraças dos colegas em incursões por bufês, residências, clubes, escolas, etc. Situações invariavelmente risíveis, não fossem por vezes trágicas.

Klaus é hiperbólico. Da metralhadora verbal ao figurino, do espaço cênico atulhado à autodepreciação, tudo nele excede. Mal pago por gerentes desses lugares multicoloridos, explorado pelos pais ou responsáveis, humilhado pelo aniversariamente, espancado pela criançada, enfim, o leque de roubadas leva o palhaço-narrador a rasgar a fantasia e vestir, metaforicamente, a armadura sem perder o nariz, mas sim a ternura.Somadas às experiências autobiográficas de Douglas, temos em cena um panorama privilegiado do inferno. A via negativa é estratégica para o discurso de Klaus. A atitude de dissenso parece relativizar a bagagem do artista que bifurcou o circo e o teatro na vida, um artífice das artes irmãs.

Há nele uma busca desesperada por uma terceira margem. Talvez não fosse preciso, para tanto, empreender esforço no apagamento de Mané, a criatura anterior cuja cadência interporia temperamento menos refratário a Klaus, como observamos no vídeo do espetáculo Procura-se um Mané – infelizmente, não tivemos a chance de conhecê-lo ao vivo.

O registro estilizado enquadra Klaus nas referências pop. São constantes as citações musicais e a guarida da atmosfera cinematográfica nas luzes e contraluzes. As escolhas tornam superficial a camada do palhaço com alma, não importa se mau caráter, cruel até a medula. O que supõe liberdade acaba tolhendo-o.Nesse clima pseudolúdico regado a gelo seco e um mar de balões no chão, o desempenho over excita a plateia pela plasticidade, pelas tiradas que buscam o efeito de desagradar. Ao contrário, agradam. Há um tom autoritário na voz que condutora, ao que o público responde com a subordinação de uma claque de televisão. A passagem de interação com três pessoas na dança das cadeiras ratifica a banalização. Estabelecer relação nesses termos pode iludir os dois lados. E o alheamento pelo riso onipresente nas artérias do entretenimento que virou a vida contemporânea, intuímos, destoa do perfil do artista Marcio Douglas, ele que também dirige a si nessa empreitada. 

- Escrito no contexto do 31º Festivale - Festival Nacional de Teatro do Vale do Paraíba, de 2 a 11 de setembro de 2016

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Priscila Gontijo - Animo Festas: o riso do avesso

Alguns espetáculos potencializam, em sua poética cênica, atravessamentos singulares. No caso do espetáculo Animo Festas, do grupo La Cascata Cia Cômica, poderíamos dizer – já tomando de empréstimo algumas concepções elaboradas pelo artista e pesquisador Renato Ferracini na palestra centrada na noção de corpo proposta pelo filósofo Spinoza (1632-1677) apresentada no dia 01 de Setembro deste 330 Festivale – que esse atravessamento, se dá através da “FILIA”, no sentido em que os gregos nominavam o amor da amizade, entre parceiros de guerra que se solidarizam com o outro em situações extremas. Situação esta, metaforizada nas incursões infernais das apresentações em festas infantis vivenciadas pelo palhaço Klaus, em sua luta pela sobrevivência num país chamado Brasil. Esse amor de amizade, de solidarizar-se com o outro em situações limítrofes, pôde ser conferido na reação do público da edição do 330 Festivale, no Teatro Municipal de São José dos Campos, em 01 de Setembro de 2018, às 21h.

Animo Festas é o espetáculo-show do palhaço Klaus, que narra a saga solitária de um animador de festas infantis e seu submundo de tristeza e miséria. O universo do palhaço é personificado na sombria figura de Klaus, que narra suas memórias ao som de rock, música francesa e trilhas infantis dos anos 1980.

O paulistano Marcio Douglas, criador da La Cascata Cia. Cômica, encarna o anti-herói da palhaçaria. Esse freakshow de humor cáustico exprime questões como o valor do trabalho artístico, a felicidade e a sobrevivência.

A trama de distopia aliada à uma visão de mundo acética alavanca diversas metáforas da vida artística na atualidade. O espetáculo dialoga com o público não apenas através do riso, mas também em sua dimensão trágica. Essa via-crúcis pelas festas infantis onde o protagonista-narrador é hostilizado por crianças violentas que o espancam, por pais que o humilham tratando-o como um servo mentecapto são encarnados nos papéis ora do Contratante, ora do Pagador ou do Aniversariante, ironizando dessa forma, os diferentes graus de poder e de status social erguidos pelo império do capital na atualidade.

Porém, este freakshow não se reduz ao discurso maniqueísta e desautoriza qualquer tendência à uma vitimização rasteira. Ao contrário, o nosso riso é um riso do avesso, um riso maldito, em que nos “vingamos” de nossas próprias humilhações e do descaso com a cultura e com a arte em nosso país, através do hiperbólico palhaço. Klaus simboliza a desagregação e a ruína de quem vive da arte no Brasil. Nesse sentido, é um espetáculo político que narra sobre a posição marginalizada que se encontra o artista de hoje frente à sociedade do entretenimento. Desamparado em um mundo onde a condição humana, em sua luta pela sobrevivência, é margeada por contratantes e pagadores, nos vemos imersos nessa comédia humana dantesca, sem um guia como Virgílio, vagando pelos labirintos do inferno que incendeia nossa história.

Conduzidos pelas mãos do mercado, mãos áridas como três desertos, buscamos um sentido para o caos desse homem partido, separado, massificado em contratos ultrajantes. Não é preciso conhecer as dinâmicas e os percalços da vida artística para nos solidarizarmos com a precariedade do sombrio palhaço. A condição patética do humano hoje é de integral relevância para o entendimento de uma posição crítica frente aos acontecimentos. É preciso, antes, se desfazer de preconceitos, de preceitos morais e concepções filosóficas hegemônicas para ser conduzido por esse inferno das festas infantis, com seus golpes, socos, gelo seco, balões de gás e comemorações efêmeras, para compreender que a contemporaneidade, em sua necessidade de entreter, acaba sempre por oprimir.

A criação de Marcio Douglas dialoga com a vida contemporânea em diversos níveis, do mais simples como pagar o aluguel até a busca por um sentido maior que parece desvanecer a todo instante.

Desse riso virado do avesso, surge a iminente necessidade do palhaço por uma interlocução sempre negada. A construção dramatúrgica pontuada pela pergunta “Você é feliz?” seguida da reação tragicamente hiperbólica como resposta nos faz ver os descaminhos em que o palhaço Klaus se perde aos poucos. Nessa trilha, que vai se adensando cada vez mais para uma situação aparentemente sem saída, nos compadecemos, pois em diálogo com esse Outro, emerge um Eu fragmentado e derrisório tão perdido em infernos de contratantes e contratados que só nos resta um riso amargo. Esses caminhos vividos por Klaus são os mesmos descaminhos que nos salvam ou nos perdem.

Apesar do ressentimento e amargura em sua voz, há humor. E o humor é um afeto, principalmente aquele que ri de si mesmo. Nesse sentido, há aquela alegria ética de Spinoza, do encontro entre parceiros de guerra, que no final, se reencontra na arena cênica, entre o público e o artista.

Por desvios, através da desconstrução do palhaço romântico, e em um perpétuo devir cênico, Klaus nos ensina que a luta pela sobrevivência em situações extremas pode ser também o caminho para ser afetado pelo Outro, que nada mais é do que uma continuidade de um Eu fragmentado, em constante relação dialógica.

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Priscila Gontijo

Crítica do 33º Festivale. Pesquisadora, professora, dramaturga e escritora. É mestranda em Literatura e Crítica Literária, onde desenvolve pesquisa na área do drama moderno e contemporâneo. É licenciada em Literatura Portuguesa e Francesa e atuou como artista orientadora em teatro do Programa Vocacional. 

​​​Dinah de Oliveira - Radiografia do escárnio

O homem já foi identificado por sua capacidade de rir e fazer rir. Henri Bergson, ao analisar o riso, observa que ele é um fenômeno resultante de uma certa insensibilidade. A produção do cômico requer um ambiente emocional distinto de passionalidades, sendo a indiferença sua circunstância natural. Bergson afirma que a emoção é um impedimento para o riso, na intenção de aproximá-lo cada vez mais de uma inteligência crítica. Mas ao mesmo tempo, ele se pergunta sobre a sobrevivência do riso, caso nossa relação com o mundo fosse da mais pura ressonância afetiva.

Na esteira das reflexões de Bergson, talvez seja mesmo legítimo nos perguntarmos sobre os motivos, ou qualidades do riso e da comicidade no teatro. Se o riso denota um certo distanciamento, não estaria incluído nele o seu avesso? O riso não poderia ser também um modo de espelhamento pela diferença? Será que existe uma medida de comicidade para que o riso alcance seu lugar de reflexão? Essas são algumas das questões que o espetáculo Animo festas, do grupo La Cascata Cia. Cômica, nos oferece como meio de aproximação.

A La Cascata pesquisa a linguagem cômica e o aprofundamento na chamada máscara do palhaço. Concebido, dirigido e atuado por Marcio Douglas, Animo festas expõe uma espécie de lado obscuro, ou como ele mesmo define: uma contramáscara do palhaço. Marcio Douglas cria a figura de um homem maduro, assim como ele mesmo, o Palhaço Klaus, um ser cheio de zonas de sombreamento, fracassado e imerso em um profundo rancor. Klaus apresenta, em termos confessionais, sua vida como palhaço animador de festas infantis, passando por agruras materiais e existenciais. O fracasso não é visto como uma relação, ou mesmo como um teor de balizamento para aquilo que poderia ser a suficiência de uma vida. Neste sentido, Klaus exibe menos um percurso de vida, e mais seus traços, seus restos, as sobras de seu próprio desaparecimento.

A encenação se vale da estrutura, mesmo que em desvio, de um show de atrações, numa mistura de Freak Show com programa de auditório. Talvez, justamente pela paridade entre as duas manifestações culturais. O Freak Show é o nome inglês dado aos shows de aberrações ou de horrores, espetáculos em que se apresentavam toda sorte de anomalias por mutações genéticas, conformações congênitas aberrantes e deformações físicas. Os Freak Shows se tornaram bastante populares em circos e festivais entre o final do século XIX e começo do século XX. Vale pensarmos que esses shows (como nos evidencia a palavra), levam ao limite a característica de exibição que existe no entretenimento. Ao mesmo tempo em que não revelam totalmente seus seres, criando um ambiente sombrio e ficcional.

O palhaço Klaus não fica atrás. Ele se vale ao máximo de suas possibilidades de exposição em um espaço cênico que evidencia elementos da arte circense, no entanto por meio de certas alterações de registro e de uma insistência pelos contrastes de claro e escuro. Klaus se movimenta num espaço sombrio. A cenografia criada pelo próprio grupo enche o chão do espaço do Centro de Estudos Teatrais de balões coloridos, mas em cores menos usuais quando pensamos em eventos infantis. Ao centro, um resíduo do circo que nos remete a entrada de um picadeiro, quem sabe, a imagem da consciência rancorosa do palhaço-homem-maduro.

Mas Klaus sabe que o mundo não comunga da sua consciência e que a vida não se trata de um todo fechado, ele precisa construir um discurso. Não há como não lembrar de Notas do subterrâneo, de Dostoiévski. O autor russo teria escrito um dos primeiros livros existencialistas, em que um homem extremamente neurótico e rancoroso decide acertar suas contas consigo e com o mundo por meio da confissão de suas mazelas.

Em ambos os casos, os protagonistas não podem contar apenas com um estado de consciência crítico que, por si mesmo afetaria outras consciências. Uma comunidade de sentidos não se cria somente por latências internas. Eles precisam expôr, falar. Alguma coisa os faz entender que é preciso criar uma trama cheia de discursos que possam ser vistos, oferecidos como um espetáculo. A adaptação para o cinema do livro de Dostoiévski realizada por Gary Walkow, tem a grande sacada de colocar o protagonista em frente a uma câmera de vídeo. Klaus está de frente para sua plateia. Mas esse não é o elemento principal, a meu ver, que faz a possibilidade reflexiva de Animo festas. Na verdade, acredito que em alguns momentos, a frontalidade e a exploração da plateia não deixam margens para uma apreensão livre do universo de restos de Klaus. A condução da plateia pode ser enganosa e provocar um riso esvaziado, ou mesmo, pré-agendado. O conhecido estado geral de mal-estar nos faz pensar que, de algum modo o riso está dado, pois ele é remédio para nossa angústia e será também o elemento de conexão entre nós no teatro. A comicidade das coisas deve ser retirada a toda prova. Nós a mererecemos!

O lugar ou dispositivo que potencializa Animo festas na direção da indiferença defendida por Bergson, me parece ser a conexão estrutural entre a interrupção da encenação e seu teor confessional, seus restos de memórias, seus processos referenciais e imaginários. Assim, podemos pensar em diferentes modos de interrupção. Em uma primeira instância, a interrupção é a do espaço. Visualmente nos é oferecido um ambiente do qual não podemos ver tudo. Vemos os fragmentos que vazam para fora do escuro. Reincidentemente, nosso olhar é interrompido pela luz (ou ou pela falta dela).

Outra interrupção é a da imagem do palhaço que alterna sua fisionomia com o homem-ressentimento que nos esclarece a respeito do fundo que há na história infantil, ou sobre como somos excelentes em procurar contato com os trabalhos de arte, mas sem querer pagar por eles.

Nessa mesma perspectiva, a dramaturgia é um acúmulo de fragmentos de memórias-klaus interrompidos pela pergunta sobre a felicidade. O modo circular da dramaturgia expõe a repetição sem dúvida, mas sempre pelo diferente, até esgotar o próprio falante que desiste de tentar responder a pergunta crucial. É como se na tentativa de reconfiguração da própria vida, no entanto sistematicamente interrompida, estivesse o lugar de encontrar as possibilidades do indivíduo. Mas é preciso estar atento, já que Animo festas problematiza a felicidade como resposta ao rancor. A questão talvez tenha mais a ver com não querer perceber isso por meio de um riso vazio, mas por um riso parado no ar.

Mas como podemos significar o gesto de interrupção em Animo festas? Não penso ter uma resposta infalível, mas arrisco dizer que podemos nos aproximar de Hans-Thies Lehmann sobre a escritura política do texto teatral. Gostaria de tomar a interrupção em Animo festas como uma pontuação da impossibilidade de reiterar um modo de agir. O possível tem pouca coisa em comum com tentar sempre da mesma maneira. Assim, a interrupção pode expor uma prática que se faz pela exceção. E proponho a exceção como um recurso para desvio dos padrões e o gesto de exceção como uma linha de fuga. A interrupção foi o que me fez respirar no espetáculo. Se podemos falar de uma festa animada, eu diria que se trata dessa: de uma festa-convocação para o desvio da norma. Ah! E nada a ver com felicidade. Vemos a vida com escárnio.

 

- Escrito no contexto do 31º Festivale - Festival Nacional de Teatro do Vale do Paraíba, de 2 a 11 de setembro de 2016

​​​Zema Ribeiro - Um palhaço brasileiro

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”Era uma vez uma boca de fumo. Nessa boca de fumo havia drogas e doces. Chapeuzinho Vermelho encheu uma cesta de doces, botou na garupa de sua bizinha para levar para a vovó e saiu pilotando pela floresta. No meio do caminho apareceu o lobo. “O que tem na garupa, Chapeuzinho?”, perguntou. “Doces para a vovó”. “Me dá a metade?”. “Não posso, são para a vovó”. O lobo insistiu, pedindo quantidades menores, até arrematar: “Se você não me der os doces, eu pego um atalho, chego antes de você na casa da vovó, mato ela e toco o terror em você; todo mundo conhece a história, vem o caçador e me mata. Dois homicídios por causa de um punhado de doces. É isso que você quer para sua vida?”.

O palhaço Klaus (Márcio Douglas) atualiza a história infantil para os perigosos ares que o Brasil respira no momento. Para bom entendedor, uma fábula basta. Foi longamente aplaudido pelo ótimo público presente ao Teatro Alcione Nazaré (Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, Praia Grande), onde foi apresentado ontem (24) o espetáculo da La Cascata Cia. Cômica, de São José dos Campos/SP, integrando a programação do Palco Giratório, do Sesc. E arrematou, irônico, para a plateia novamente irromper em aplausos: “isso sim é uma história infantil: ninguém morre!”.

Klaus é um palhaço aposentado. No monólogo tragicômico ele compartilha sua experiência animando festas infantis. O palhaço é uma metáfora: alvo de toda sorte de preconceitos e violência. Politicamente incorreto, a personagem bebe e fuma em cena. Beira o desalento. Logo de cara, adverte: “quem está em busca de algo lúdico, algo mágico, pode ir embora”. Soa cruel, mas é apenas sincero.

Animo festas, o espetáculo, se vale do universo infantil para debater temas em torno das relações de trabalho: qualificação, violência, preconceito, assédio, direitos. E também realização e felicidade: não à toa a pergunta “você é feliz?” aparece diversas vezes no texto, dirigida ao palhaço, quando ele relata encontros com pessoas diversas após as festas.

Hábil ao embrulhar estes questionamentos no “inocente” mundo das crianças, Klaus provoca gargalhadas na plateia durante o espetáculo inteiro. Beira o nonsense quando, por exemplo, saca um canivete ao ameaçar as “crianças” (dois adultos escolhidos aleatoriamente em meio ao público) para que deixem a aniversariante (outra adulta idem) vencer o jogo da dança das cadeiras – quando joga luz sobre outro assunto em voga no Brasil: a corrupção.

“Todo DJ é um “filha” da puta”, provoca: “a gente pede uma música, ele sempre toca outra. O DJ é aquele cara que não aprendeu a tocar um instrumento, mas teve dinheiro pra comprar o equipamento”, ataca. Provocar é uma especialidade de Klaus, que vai parar numa penitenciária após provocar um policial. É outra história em que se equilibra entre o hilariante e a denúncia social, a debater a questão carcerária, tema sempre urgente e quase sempre escamoteado, não apenas no período eleitoral.

Vez por outra, a palavra palhaço é injustamente usada como xingamento. Klaus define a si mesmo como um palhaço profissional. Ousa peitar contratantes, aniversariantes e quem mais achar que deve em nome de sua dignidade, que não desaparece sob uma camada de tinta e maquiagem. Ao contrário de muitos (não apenas palhaços) que se deixam tanger como gado para o abatedouro, ele dá um importante alerta a quem, por ação ou omissão, em nome de valores no mínimo dúbios, se arrisca a abdicar de seus próprios direitos. Klaus é brasileiro e se reinventa para existir e resistir.

https://zemaribeiro.farofafa.com.br/2018/10/25/um-palhaco-brasileiro/

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Beto Carlomagno - Desvendando o riso

Marcio Douglas encarna o palhaço Klaus no espetáculo, resultado do estudo do arquétipo da sombra, de Carl Jung

Por traz da maquiagem e do riso de um palhaço, pode se esconder muito mais que o artista que dá vida a ele. E quando essa máscara cai, uma realidade totalmente diferente da imaginada toma o centro do picadeiro. Vemos uma pessoa que está à margem da sociedade, em seu embate pessoal entre a fidelidade à arte que se propõe e a necessidade financeira de se ajustar ao mercado.

Essa é a história do palhaço Klaus e esse mundo ácido e sarcástico é o espetáculo "Animo Festas", que será apresentado neste sábado, 26, às 20h, no Teatro Municipal Paulo Moura, dando continuidade à programação do Janeiro Brasileiro da Comédia. "Animo Festas" é o freak-show do palhaço Klaus que nos narra seu submundo decadente como um animador de festas infantis.

Klaus é uma criação do ator, diretor e palhaço Marcio Douglas em resposta a uma necessidade do próprio artista de reavaliar sua trajetória, a própria situação da cultura nacional e a valorização ou não do criativo.

Assim, Klaus é uma representação bastante oposta do que se imagina do palhaço, um ser pessimista e fracassado, desprovido de esperança. Resultado de um intenso estudo de Marcio diante da sombra do arquétipo do homem maduro e da linha de trabalho da psicologia analítica de Carl Jung, Klaus foi tomando forma.

"Este personagem trilhou uma vida medíocre animando festas infantis e buscando apenas a sobrevivência. Porém seu humor sarcástico faz dele o contrário e ao mesmo tempo o espelho da sociedade contemporânea", descreve Marcio.

Criar Klaus e o próprio espetáculo "Animo Festas" foram metas que Marcio determinou para si mesmo como uma forma de continuar se desafiando. "Depois de 20 anos de carreira, achava que algo estava faltando. Estava angustiado. E a angústia faz parte da criação artística. Estava muito insatisfeito com as coisas que vinha fazendo, então decidi fazer algo mais ácido, agressivo".

O resultado toma como referência a própria vida do artista como palhaço, mas também se inspira no trabalho de Jung e nas histórias de muitos outros artistas e palhaços envolvidos no ramo de animação de festas.

"Algumas partes da história são minhas, mas trabalhadas de uma maneira mais dramatúrgica. E também relatos de palhaços de festas. Partia de algumas perguntas. 'Qual foi o seu pior dia? Qual foi o dia mais agressivo?'. E os palhaços me davam esse retorno. A dramaturgia nasceu desses encontros e dessas conversas. Nela, o Klaus relata suas memórias de trabalhos em festas de criança", conta.

E com "Animo Festas" Marcio também viu uma oportunidade de analisar a situação da cultural no País. Tanto de uma maneira macro, quanto olhando mais atentamente para o problema da valorização do trabalho artístico.

"Esse espetáculo também nasceu da insatisfação diante da forma como o artista é contratado e colocado na sociedade. Essa questão com o trabalho, a valorização do artista e também a maneira como o artista se coloca e se valoriza é muito comum, mas não é normal. É uma agressão. A pessoa contrata o artista e acha que, porque você faz um trabalho que está feliz, essa deve ser sua recompensa. Trabalho tem que estar ligado a sofrimento e insatisfação. Você só precisa receber se tiver insatisfeito. Se está feliz, para que receber? E isso é ainda mais latente na arte", pontua Marcio.

Segundo ele, a obra busca questionar e apontar o fato de que precisamos mudar a mentalidade sobre a nossa relação com o trabalho e buscar o equilíbrio entre a felicidade e o reconhecimento profissional e financeiro.

Trilha

A trilha sonora do espetáculo tem um papel bastante importante em sua execução. Composta de uma mistura de gêneros, ela serve como um fio condutor dos momentos e da parte emocional do personagem. "Temos rock and roll pesado, que são os momentos do Klaus em sua potência. Há uma quebra dramática com versões de "Ne Me Quitte Pas", de Jacques Brel. E trilha sonora de festas dos anos 1980. A música serve para ambientar os lugares ou as emoções desse palhaço".

O riso

Olhar para a própria arte fez com que Marcio encarasse de outra maneira o riso da plateia, avaliando quando e como ele é aceitável. "Criar e apresentar 'Animo Festas' me impactou na forma como vejo a recepção do público. O espetáculo é de humor ácido, diferente de tudo que eu já havia feito e, ao mesmo tempo, eu vejo que o personagem está em total miséria e as pessoas estão rindo muito. E aí fico preocupado. Do que as pessoas estão rindo?".

Para Marcio, isso serviu para mostrar que ele, como palhaço, não pode se tornar um escravo do riso, mesmo que haja uma concepção errada, especialmente para esse tipo de arte, de que é preciso fazer rir de qualquer forma e a qualquer custo para atingir o sucesso. Assim, o ator segue duas questões atualmente: "Do que se ri?" e "por que se ri disso?".

"Não posso achar que o riso é um termômetro. Às vezes, o riso pode ser um péssimo termômetro de como está a sociedade. Uma sociedade cruel pode rir de assuntos muito sérios. Uma sociedade homofóbica pode fazer muitas piadas com a população LGBTQ. Uma sociedade racista vai querer rir de piadas racistas. Aí não é uma questão de qual é a minha proposta com o teu riso, mas ter o teu riso puramente. Posso fazer uma piada racista e as pessoas rirem dessa piada, mas era isso que eu queria dizer? Era isso que eu queria provocar? Quando o riso não tem uma provocação de uma reflexão e de um valor, ele pode ser arma para qualquer um", explica.

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Simone Carleto - Luz e sombra tornam bela a trágicômica jornada do Palhaço Klaus

O objetivo que o guiava não era impossível, ainda que sobrenatural. Queria sonhar um homem: queria sonhá-lo com integridade minuciosa e impô-lo à realidade. Esse projeto mágico esgotara o inteiro espaço de sua alma. […] No começo, eram caóticos os sonhos; pouco depois, foram de natureza dialética. O forasteiro sonhava-se no centro de um anfiteatro circular que era de certo modo o templo incendiado […] O homem, um dia, emergiu do sono como de um deserto viscoso, olhou a luz vã da tarde que, à primeira vista, confundiu com a aurora e compreendeu que não sonhara. Toda essa noite e todo o dia, contra ele se abateu a intolerável lucidez da insônia. (Jorge Luis Borges. As ruínas circulares.)

 

O monólogo Animo Festas, do ator Marcio Douglas, poderia ser caracterizado como diálogo entre luz e sombra, entre ator e público. O texto autoral, com base na trajetória de Márcio Douglas como artista, traz à tona seu duplo, o palhaço Klaus, animador de festas infantis. A iluminação de Renato Jr. completa a dramaturgia do espetáculo, trazendo nuances de luz e sombra, enfatizando os aspectos melancólicos do anti-herói Klaus. A dramaturgia da encenação apresenta tratamento cômico para a vida trágica de Klaus e a ambienta em cenário explicitamente decadente de festas infantis. Observando criticamente, as supostas belas festas infantis, seja de ricos ou classe média, trazem um mal gosto kitsch irrefutável. Esse aspecto reificante de tais festas é questionado e criticado pela peça Animo Festas. Com humor ácido, Márcio Douglas, com Klaus em sua pele, carne, ossos, vísceras, demonstra, passo a passo, como a sociedade corrompe os seres. Esse caráter idealista da obra não impede que Márcio Douglas apresente Klaus como um trabalhador das artes, o ator-palhaço que um dia imaginou o mundo transformado pelo poder da arte. Para a empreitada, traz episódios de diferentes festas vivenciadas como palhaço, que foram paulatinamente mortificando suas esperanças. Desde o início mostrando-se niilista, Klaus rompe com os estereótipos do palhaço sorridente e jocoso. Sua voz grotesca e sua aparência lúgubre externam parte do obscurantismo interno de seu espírito relativamente destrutivo, ao mesmo tempo que sua ousadia em expor as mazelas humanas mais escondidas extirpa, pelo riso, indignações guardadas em face da imposição de modo de vida simulado como feliz. Isso porque a peça explicita também o modo como pessoas se sentem superiores por terem dinheiro ou posição social de poder e, a partir de premissas individualistas e egóicas, subestimam e exploram outros seres humanos. Que tipo de ensinamento tais atitudes transferem às crianças? Certamente podendo ser considerada “impróprio para menores” o espetáculo adulto aborda também o comportamento desses "pequenos cruéis” ao sabotar, bater e humilhar palhaços, assim como também costumam fazer com seus professores, muitas vezes tratados como subalternos às famílias. Após cada incursão em uma festinha “macabra”, Klaus retorna após “5 dias” como que emergindo de um fundo de poço, representando a depressão e a luta pela existência do ser diante da realidade percebida como ruptura. Nesse quadro, que lembra o expressionismo, o indivíduo cindido desconhece o exterior como realidade possível. Aprofundando essas contradições, uma espécie de radiografia revela os conflitos internos do ser em decorrência de seu contato frustrado com o mundo exterior. Do ponto de vista da atuação como Klaus, o ator relata ter utilizado o mergulho na sombra da personalidade do palhaço e na maturidade para compor a narrativa. Márcio Douglas apresenta domínio de cena, do jogo com o público e da luz, compondo com precisão contrastes que conduzem o público do riso expansivo à busca da face do palhaço em meio a uma imagem distorcida e cadavérica, que se forma como um quadro de Edvard Munch (1863-1944), a cada vez que escuta a questão: “Palhaço, você é feliz?”. O semblante de Klaus decompõe-se na penumbra, ao som de Ne me quite pas, de Jacques Brel. Publicada em 1959, a canção trata de uma separação, cuja tradução seria Não me deixe. Na peça, uma leitura possível, entre tantas, é que a pergunta funcionaria como um gatilho. Acionado, faz com que Klaus desça mais um degrau rumo ao encontro de suas entranhas. No retorno, carrega nas tintas que aproximam Klaus de um verdadeiro trickster. Com seu duplo indivisível e complexo, raiz de todas as personagens, o trickster torna-se capaz, em algumas situações, de demonstrar seu poder. É o que ocorre quando Klaus mobiliza bichos do submundo, no melhor estilo “ratos, entrem nos sapatos, do ‘cidadão civilizado’”, para invadir a festa das “princesinhas” da grande coorporação estadunidense que se alimenta de “vidas e supostos sonhos infantis”. Klaus arremata, sarcástico: “São amigos do Mickey!”. O que torna a obra esteticamente bela é sua característica complexa, que imbrica estrutura e conteúdo reunindo a ancestralidade do palhaço e do artista cênico. Nesse sentido, a arte popular e arquetípica do palhaço não corresponde aos ideias de beleza da estética clássica. Cria em contraponto outras referências de apreciação, ao elaborar soluções cênicas inventivas, sempre vivas, para desafios comuns da profissão. Há diversos anos na estrada em inúmeros festivais e programações, o conjunto da obra, que inclui o posicionamento ético do artista Márcio Douglas ao declarar-se absolutamente preocupado com as possíveis reverberações de sua obra, completa-se no bate-papo. Com voz agradavelmente doce e disponibilidade para o diálogo, Márcio reitera o que pudera ser percebido pelo público presente na noite de 11 de novembro de 2019 no 41° Feste: assumir o tempo de maturação e elaboração das inquietudes e depressões é o que permite ressignificá-las e atribuir a esse processo de descoberta uma forma artística a ser compartilhada. Assim, completa-se a coerência do espetáculo e da florescente carreira do artista Marcio Douglas. Evoé!

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SIMONE CARLETO Artista pedagoga (atuação e direção), mestre, doutora e pós-doutoranda em Artes 1 Cênicas pelo Instituto de Artes da Unesp. Atriz, assessora de diversos grupos teatrais e autora de ensaios e artigos nas áreas de pedagogia, crítica e interpretação teatral. ​Crítica do 41º Feste. Festival de Teatro de Pindamonhangaba - SP

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Lívia Mattos - Animo Festas: "Kill Bill dos palhaços"

​Há tempos ouvia falar desse espetáculo. De forma que fui assisti-lo com uma expectativa alta - o que acaba com boa parte do desfrute de nossas experiências como público. Por sorte, o caso não acabou em decepção. Pelo contrário. Animo Festas, na figura de Márcio Douglas - que assina criação, atuação, sonoplastia, design gráfico, cenário e figurino - faz uma catarse coletiva necessária em seu solo. Explico. Trata-se da narrativa do palhaço Klaus - obscuro, underground, ácido - que apresenta "o submundo das festas infantis" como seu mercado de trabalho, no qual é atravessado por diversas situações que expressam a violência do mundo - ou melhor, a violência humana. Mas nessa ficção, baseada em histórias reais, ao invés de se calar - pela necessidade de sobrevivência material - ele vinga diversos palhaços, artistas e trabalhadores explorados, cada qual em seu meio, criando outras narrativas como possibilidades de resistência. Em outras palavras, cospe uma enxurrada de sapos que tanto temos que engolir nesse sistema.

O tratamento dramatúrgico é excepcional, por diversos fatores. Vou elencar alguns deles. Primeiro por partir de um currículo off de palhaços e artistas, que não expõem o que precisam fazer mensalmente para pagar as suas contas, a fim de viver de arte nesse país. Também pela inversão de perspectiva sobre personagens e situações dadas como inocentes - como crianças, DJ's, festas infantis, abraços e brincadeiras - nos mostrando como as violências são diversas e estão em todos os lugares, mas só costuma ver quem é violentado. Os algozes, que na vida real passam por vezes despercebidos da violência que exercem, são retaliados no espetáculo como ações-espelho: violentas. Um verdadeiro "Kill Bill dos Palhaços", como comentou o autor no bate-papo: "não é sobre justiça, é sobre vingança". A vingança desejada, que vai para o campo da ficção para ser realizada, a fim que reverbere no real.

A música também estrutura a dramaturgia, através do recurso de repetição, sendo utilizada como contraponto climático com a cena ou reforçando o espírito desta. O rock situa a personagem, sendo a paisagem sonora que a define e à qual ela recorre, através dos fones de ouvido, para lidar com o seu entorno. "Ne me quitte pas" é a música que marca a reflexão "Palhaço, você é feliz?", que junto com a luz a pino funcionam como uma quebra dramatúrgica que tece o espetáculo. Outras músicas, como a "Bachiana n 5", de Villa Lobos, uma valsinha - que não conheço - servem como contraponto ao grotesco, ao texto, compondo a cena.

A transposição do espetáculo teatral para plataforma virtual, pré-gravada, foi apresentada imbuída de uma transcriação, a partir da qual se incluiu novas cenas, outras formas de performar a mesma cena, o uso da linguagem virtual para criação de piadas, duplicação da personagem em cena, inclusão de documentos pessoais... enfim, uma série de recursos que a edição e a captação prévia permite. Considero, assim como Márcio Douglas, que essa adaptação ganhou potência por expandir o pensamento teatral, pensando o audiovisual como ferramenta criativa. 

A construção narrativa do palhaço Klaus, desde tempos de inocência, passando pelo treinamento para lidar com o real, às descidas cada vez mais fundas ao submundo, nos faz cúmplices dele. De forma que é conseguida uma empatia que não vem dos acessos do carisma, mas da identidade com essa personagem, que é uma dilatação de nós mesmos, de nossas dores e amargores. Trata-se de uma metáfora da vida e do ser humano através desse clown-caos-Klaus. Sem dúvida, o Animo Festas é um documento poeticômico - ou poetitragicômico - de manifesto, de militância, de grito. Um grito coletivo.

Escrito no contexto do 35º Festivale - Festival Nacional de Teatro do Vale do Paraíba, de 20 a 31 de outubro de 2021

​​​​​André Bizorão - Animo Festas – Uma não crítica

Em outubro, mais exatamente nos dias 22, 23 e 24, o Sesc Guarulhos recebeu o espetáculo “Animo Festas”, monólogo de palhaçaria para adultos. À convite da Guarulhos Cultural, fui assistir a esse espetáculo que resultou agora em uma “não-crítica” ao sentimento de riso através da melancolia do palhaço Klaus.

Por André Bizorão

Quando eu falo sobre palhaçaria, me sinto nesse tal de “lugar de fala”. É uma linguagem vasta, cheia de possibilidades e nuances, que talvez eu nunca vá dominar nem pela metade… Mas há quase vinte anos, eu pesquiso e vivencio o nariz vermelho e quais são os efeitos que ele pode gerar em nós e ao entrar em contato com a plateia.

Dito isso, assistir ao “Animo Festas” me fez pensar na urgência de sermos subversivos, questionadores e algumas vezes, até grosseiros… Não com a intenção de sair agredindo as pessoas pela rua, mas sim, decapitando ideias antigas, ultrapassadas e que continuam a ser praticadas com uma rotina absurdamente perturbadora através de discursos hipócritas e moralistas.

O Palhaço Klaus é a materialização dos incômodos que todo portador do nariz vermelho já sentiu, inclusive os que nunca animaram festas (eu já passei por essa tortura). Sua intenção inicial é a das melhores e vê-lo mandando às favas os seus mestres é o primeiro momento catártico, pois o processo de descoberta do seu clown é como um parto, envolto de dor e choro com o dom sublime da vida, a gente se sente destruído e reconstruído continuamente e, nunca pára! Alguns chamariam o Klaus de bufão; eu prefiro dizer que ele é apenas o lado da palhaçaria que a gente escolhe reprimir.

O espetáculo é construído com a reconstituição de festas que marcaram a vida deste Palhaço, sempre sem altos e com muito baixos, ele vai nos contando sua relação com os familiares e o aniversariante fazendo questão de evidenciar as funções sociais postas nesse tipo de “mercado” em que o palhaço é o produto e/ou serviço “comprado” para satisfazer aos egoísmos de ambos: os pais que querem se livrar dos filhos e os filhos que tentam se livrar do palhaço tirando a única coisa que lhe sobra: a vida!

Eu ri muito, ri alto e tive a liberdade de expurgar algumas gramas do sentimento amargo que a pandemia implantou em nós, me senti representado em muitos momentos e em tantos outros, o exagero da situação apenas deu palco ao imaginário do meu palhaço que ao som de “Ne me Quitte Pas” escuta a constante pergunta feita no espetáculo: “Palhaço, você é feliz?”.​​​​​

ANIMO FESTAS: QUANDO O TRASH É POP 

Por Julia Guimarães

 

Em repertório há quase 10 anos, o espetáculo Animo Festas, do artista Marcio Douglas (La Cascata Cia. Cômica/São José dos Campos), não apenas já foi visto por muita gente como acumulou, no decorrer desse tempo, uma verdadeira legião de fãs. Após a apresentação realizada na última quinta-feira (7), no 37º Festivale, diversas pessoas da plateia que ficaram para o bate-papo com o ator relataram já ter assistido muitas e muitas vezes à saga anti-heroica do decadente palhaço Klaus. De fato, o espetáculo é daqueles que possuem um poder de atração difícil de explicar, sobre o qual gastamos adjetivos cheios de clichês pela pura incapacidade de determinar por que, afinal, algumas obras são tão fascinantes. Depois de ter visto o trabalho duas vezes – e me deliciado em ambas – é a este exercício que me proponho aqui. Por que Animo Festas é tão prazeroso de assistir? A começar pelo título, a montagem já diz a que veio. O espetáculo narra a trajetória nada gloriosa de um palhaço que, após ter se desiludido profundamente com sua atividade profissional de animador de festas infantis, decide vingar-se. Com um humor ao mesmo tempo ácido, pop, debochado e politicamente incorreto, o palhaço Klaus conquista a plateia ao romper incessantemente os limites do bom senso e as expectativas sobre o que se espera dele, sobretudo quanto ao nosso imaginário acerca das relações entre palhaços e crianças. No lugar de uma figura lúdica e pueril, surge um clown ogro, fumante, alcoólatra, um ícone maldito e marginal, espécie de versão sombria do submundo das festas infantis. As crianças, por sua vez, no jogo cômico de inversão, são vistas por ele como as grandes vilãs de sua história, responsáveis por pisotear, humilhar e quebrar palhaços. Sem se preocupar com o que seria o “correto” nesse tipo de abordagem, o palhaço de Animo Festas faz o oposto: relata em cena histórias de crianças cruéis, agressivas, mimadas, que não aceitam perder. Versões mirins de seus próprios pais, aqueles que financiam o trabalho dos palhaços animadores de festa, e se sentem, por isso, no direito de realizar com eles toda sorte de abusos e perversidades. Num ambiente kitsch repleto de balões, luzes coloridas, cabeças de bonecos e de caveira, ao som de música pop dos anos 1980, Klaus nos surpreende ao revelar em cena também suas crises existenciais. Com uma maquiagem carregada de olheiras, chapeuzinho de festa na cabeça e seu eterno cigarrinho na mão, a figura criada por Marcio Douglas se vê sempre na mais absoluta solidão quando interpelado por uma repetida pergunta: “Palhaço, você é feliz?”. Aqui, a decadência se traduz pelo som da canção francesa “Ne me quitte pas (“Não me deixe”) e pelo único foco de luz da cena voltado à lenta ação do palhaço de fumar seu cigarro. Essa atmosfera trash que atravessa tanto a dramaturgia quanto a estética do espetáculo adquire ainda uma contundente conotação crítica quando percebemos que as angústias daquele palhaço se relacionam, em um contexto mais amplo, às péssimas condições de trabalho características das sociedades contemporâneas. Do camarim improvisado num banheiro com produtos de limpeza às agressões de pais e crianças que se sentem confortáveis em humilhá-los pelo simples fato de que estão pagando pelos seus serviços, as situações vividas pelo resiliente palhaço Klaus podem ser lidas como metáfora hilariante e cruel para o estágio agudo de precarização do trabalho no mundo atual. De algum modo, estão presentes na dramaturgia da peça todos os aspectos que caracterizam esse cenário, como a máremuneração, os vínculos frágeis com os empregadores, a ausência de direitos trabalhistas e de condições laborais mínimas. Há outro elemento igualmente explorado na dramaturgia que faz desse clown uma figura irresistível. É que ele não apenas ultrapassa todos os limites do bom comportamento, não apenas sintetiza toda uma complexa teia de relações trabalhistas precarizadas, como também é o palhaço que se vinga de tudo isso. Nesse sentido, o lugar da ira no espetáculo funciona como válvula de escape a todo esse sentimento coletivo de frustração, desaguadas não sob a forma de protesto, mas pela gargalhada escancarada, numa espécie de catarse coletiva. Ao valer-se da amoralidade e do escárnio como respostas ao seu ressentimento, Klaus se transforma num anti-herói. Faz do sarcasmo sua filosofia de vida, ao mesmo tempo em que continua a se dar mal a cada nova aventura pelo universo das festas infantis. E é justamente ao extrair riso de seu próprio fracasso e vulnerabilidade que o palhaço Klaus se torna cada vez mais pop e adorado por onde passa. 

 

Julia Guimarães  é crítica teatral, professora, pesquisadora e jornalista. É coeditora do site Horizonte da Cena (horizontedacena.com), pós-doutora em Artes Cênicas pela UFMG e concluiu seu doutorado na USP, com pesquisa em teatro contemporâneo. 

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SHOW DE VARIEDADES ILÍCITAS: OPERAÇÕES DE PROFANAÇÃO

por Amilton de Azevedo

“(...) o obsceno, o repugnante e mesmo a blasfêmia (...) podem ter ainda o significado específico de uma agressão destinada a romper os padrões da estética tradicional que concebe a arte como campo lúdico isolado da vida real.” (O teatro agressivo, Anatol Rosenfeld) O palhaço Klaus é um fenômeno. Ao lado de Irmã Gorete e Medusa, seu Show de Variedades Ilícitas parece ter sido perfeitamente desenhado para ocupar as sessões malditas de festivais de artes cênicas. Pouco antes das onze horas da noite, uma imensa fila diante do Cine Teatro Benedito Alves se formava. Um desavisado, vendo a quantidade de jovens reunidos numa sexta-feira, poderia pensar se tratar de uma balada; era teatro. A obra que encerrou a programação do quinto dia do 38o FESTIVALE lotou plateia e mezanino do espaço de 270 lugares. Não é de se surpreender, considerando a longevidade e o sucesso de Animo Festas, obra anterior de Márcio Douglas diante da Palhaço Klaus Arrependimentos Artísticos. Estreado em 2015, segue circulando por festivais pelo Brasil. No Show de Variedades Ilícitas, inclusive, reconhecem-se elementos já presentes em Animo Festas – o que é compreensível, visto que, se não se trata de “sequência” do trabalho pregresso, estamos diante do mesmo palhaço e do mesmo universo. Klaus, aliás, apresenta Medusa (Renato de Souza Junior) e Irmã Gorete (Adriana Marques) como parceiros de um empreendimento de sucesso no final “dos anos 80, ou 90, não me lembro”: a animação de festas infantis. Agora, no entanto, saem as narrativas – terrivelmente baseada em histórias reais – da experiência do palhaço que “vai onde ninguém vai” e entra, como apontado pelo título, um Show de Variedades Ilícitas. Se Animo Festas era um mergulho na sombra do arquétipo do palhaço, a possibilidade de pesquisá-lo como anti-herói, o presente trabalho parece se organizar como uma busca pela subversão de apresentações e gags tradicionais, de números musicais às brincadeiras com a plateia, passando por mágicas e comédia física. O gesto de insurreição operado por Douglas e companhia não se volta a uma rejeição do gênero cênico sendo corrompido. Aliás, Klaus anuncia logo no início que trata-se de uma obra “sem pretensões críticas ou verdades implícitas”; pretensa ou despretensiosamente, é impossível não perceber a criticidade do discurso. É bem verdade que não há verdades implícitas: nada que se vê na cena é um disfarce, a obra não é um enigma, não serve a algo sub-reptício; ela está ali, no que está sendo dito e feito. No Show de Variedades Ilícitas, nada é sagrado – desde o humor em torno do encontro de Gorete com a religião até, poderia-se dizer, a escolha de Douglas retirar a máscara do palhaço Klaus diante do público no momento dos agradecimentos. Nessas operações de profanação, a obra ampara-se no obsceno e na blasfêmia na direção da “representação contundente da decomposição dessas realidades”2 violentas que nos cercam nessas intersecções entre mundo do trabalho e mundo da arte. Precarização e miséria são o sal dessa terra arrasada e é disso que se faz rir. Não há horizonte apresentado na obra para além do pessimismo e do desalento que se vê em Klaus e seus asseclas. É uma cena mais que aberta, escancarada, onde se verifica uma adesão absoluta do público presente – um fenômeno legitimamente difícil de descrever. Como se irmanados no Instituto Palhaço Klaus, ainda que provavelmente poucas ou nenhuma das pessoas na plateia seja palhaça, há uma identificação absoluta no humor que se constitui a partir de um niilismo que jamais deixa de ser crítico. Douglas faz dos projetos no escopo de seus Arrependimentos Artísticos um espaço de verdadeira singularidade, uma pesquisa continuada de linguagem que insiste em se levar tremendamente a sério enquanto tem consciência que é impossível se levar a sério. Trabalhando no ramo das diversões adultas, o humor ácido que permeia o todo deste Show de Variedades Ilícitas deixa seu público desejante, inclusive construindo uma relação de ofensas e agressões. Números de mágica, de escapismo, musicais; estruturam o show algumas gags tradicionais recriadas por uma lente tosca – mas com um importante refinamento – ao lado de momentos “lúdicos” (em mais uma operação de profanação, ironizando o próprio fazer) e uma gincana com a participação de pessoas da plateia. Há, em alguns momentos, uma necessidade de maior precisão técnica, ainda que a ilusão não esteja no foco da encenação; é importante para que não se torne um ruído – ou que se assuma uma espécie de incompetência como signo intencional, o que também caberia na proposta. Tanto a dramaturgia de Douglas quanto os comentários improvisados se localizam dentro de um enquadramento que, enquanto insiste na decadência e no absurdo, parece orientado por um discurso também político, de modo que Klaus, Medusa e Gorete fazem rir a partir de sua própria condição – ou do avesso dela, ou do imaginário que permeia quem são os fazedores de arte. Assim, o investimento é em uma encenação que se permite estender os limites da comédia para um lugar outro do que se vê em muitos stand-ups, por exemplo. Não se trata de fazer uso da liberdade do humor para polemizar a partir do “politicamente incorreto”, mas de compreender que ser contemporâneo é não se deixar cegar pelas “luzes do século”, é conseguir “entrever nessas a parte da sombra, a sua íntima obscuridade”, citando Giorgio Agamben.

A iluminação, de Renato de Souza Junior, joga nessa construção de luz e sombra, com pequenos focos individuais localizados como ribaltas no proscênio – o ângulo também produz algo do universo do horror – enquanto a fumaça ocupa toda a cena e a trilha sonora, de Douglas, brinca com o puro suco do trash anos 80. Quase como assistentes de palco, a empedrada Medusa e a lasciva Irmã Gorete também brilham em diversos momentos da obra. Mas é Klaus, no centro do palco, que é o verdadeiro showman. Será de sua boca que sairá talvez a maior convocação do Show de Variedades Ilícitas: em meio à tanta desesperança, miséria, desrespeito e impotência, deve-se cultivar, sim, o ódio. Rir juntos, expiar as dores dos tempos, aceitar o sombrio que nos cerca e nos habita; organizar a raiva.

 

1 amilton de azevedo é pesquisador e crítico das artes vivas. Doutorando em artes cênicas na ECA/USP; mestre em artes da cena, especialista em direção teatral e bacharel em teatro pelo Célia Helena, onde lecionou entre 2016 e 2019. Idealizador, editor e crítico na plataforma ruína acesa (https://ruinaacesa.com.br), integrante do projeto arquipélago. Colabora com diversos festivais regionais, nacionais e internacionais, ministra oficinas de formação em crítica e escreveu para a Folha de S. Paulo. Membro da seção brasileira da IATC/AICT (Associação Internacional de Críticos de Teatro), em 2024 foi convidado para cobrir o Festival TransAmériques (Montreal/Canadá).

 

Criatividade ácida co(r)roendo as amarras sociais

Por Simone Carleto

O universo da palhaçada inundou a cena de risos na noite de 11 de novembro de 2023, no 45° FESTE - Festival Nacional de Teatro de Pindamonhangaba. Estudos sobre esse fenômeno, acerca do que pode se tornar risível vêm sendo feitos há muitos anos, e muito do que já se viu pode ser realimentado pelo contato com a obra Show de Variedades Ilícitas, produzida por Klaus Arrependimentos Artísticos. O espetáculo traz um trio de palhaços: Klaus (Marcio Douglas), aquele que anima festas de crianças; Medusa (Renato de Souza Junior), dito mago dos efeitos especiais; e Irmã Gorete (Adriana Marques), que abandonou o submundo e tornou-se supostamente mal-humorada. A dramaturgia se estabelece por um roteiro de números de variedades criadas especialmente para a montagem, compondo o universo atoral da peça. Assim, canções contam a história do encontro dos dois palhaços e palhaça, ambientam cenicamente a trabalho relacional com o público, e estabelecem a base sonora para os chamados números de variedades. Além das canções, o som do espetáculo é composto por música mecânica operada pelo palhaço Medusa, que com pouca expressão verbal, se manifesta por gestualidade característica e corpo delineado por figurino ajustado às formas corporais, evidenciando a genitália. Entre músicas com funções sonoplásticas, bases para as apresentações musicais do trio, surgem momentos nos quais Klaus dirige orientações e ordens a Medusa. A operação de luz é de Bianca Burgomeister. De modo geral, Klaus se caracteriza no Show como mestre de pista, organizando as apresentações dos números e convocando Medusa e Gorete às ações. Ela, a palhaça gata magnífica estupenda deslumbrante, surge com uma aparência impactante, capturando os olhares para ela, devido à sua aparição sensual, brilhante e com a expressividade bem marcada por uma espécie de tônus sedutor de atitude irretocável nas movimentações, no andar, na dança, na manipulação de objetos, estabelecendo um ritmo especial para a cena, que ganha leveza e graça em meio às críticas sociais cortantes que fazem parte dos focos temáticos do espetáculo. As camadas dramatúrgicas manifestas pelo texto e organização das cenas tratam do mundo real da palhaçada como um trabalho, como área específica da linguagem artística teatral (o que traz para a obra um caráter metalinguístico acerca do teatro, do palhaço e dos espetáculos de variedades), e também como um estrato que revela a vida social, com suas hipocrisias, vernizes, equívocos de toda ordem, além das ilicitudes políticas. Esses elementos ficam marcados desde o início, quando Klaus estabelece um certo contrato com o público, em que não se responsabiliza pelas expectativas alheias. Trata-se de um importante ponto de partida para que o público esteja à vontade para imaginar, enxergar- se em suas contradições sociais e perceber-se disposto a embarcar em uma aventura ao fracasso como dado em um sistema excludente, opressor e falacioso. Há um adágio popular segundo o qual "É brincando que as verdades são ditas". O Show de variedades ilícitas aborda temas que provocam reflexões sobre debates polêmicos socialmente, como o uso das religiões como dominação dos chamados instintos humanos, a guerra às drogas, atividades politicamente incorretas, assim como a própria noção de divertimento e ludicidade relacionada ao mundo do circo, dos palhaços e de determinada comicidade. Porém, no caso do Show de Variedades Ilícitas a brincadeira tem requintes corrosivos de qualquer vestígio de hipocrisia, recorrendo ao grotesco, às transgressões e ao imprevisível. Surpreendente, traz algumas revisitações de elementos presentes em Animo Festas (espetáculo de 2015, que notabilizou características peculiares do Palhaço Klaus), como a participação do público que, em sendo adulto, é convidado a experimentar o jogo que acontece no número “Boteco do Klaus” e concorrer a um "kit ressaca”, composto por macarrão instantâneo, refrigerante e medicamento. Aquela/e participante que beber mais recebe o prêmio. As consignas em uma roleta girada pelo Palhaço Klaus apontam para as opções: bebida misteriosa, escolha da bebida por uma ou outra pessoa jogadora em função da cor do copo amarelo ou azul, e uma bebida que pode ser escolhida pelo próprio Klaus. Cenas de ilusionismo e malabarismo são utilizadas, uma delas com o suposto roubo de uma carteira de pessoa do público, outra com o sumiço do pó em um prato, além do malabarismo com luzes. Também há um número com inspiração acrobática, no qual a estrela é a Palhaça Irmã Gorete. Com precisas alusões ao seu passado pregresso, a cena é elaborada com justa medida na qual não se corre o risco de objetificação do corpo da mulher, em que a bela atriz Adriana Marques demonstra habilidade corporal flexível, enquanto seus partners aparecem levemente “contundidos" ao realizar as evoluções acrobáticas relativamente simples. Essas e outras aproximações ao repertório circense funcionam como reprises da própria função artística, considerada como metáfora do mundo do trabalho e das relações humanas. Considerando o grotesco como característica de certo modo subterrâneo às estruturas conscientes mais imediatas, bem como aspectos "guardados em cavernas”, tornando-se espaços obscuros e úmidos de nossos seres sociais, nos quais podem proliferar seres inimagináveis a povoar nosso imaginário, nossas subjetividades e relações, ele pode ser revelado para nós mesmos ao nos deixarmos afetar pelas atuações de Klaus, Gorete e Medusa. Pelo riso advindo das oposições ao politicamente correto, da exacerbação dos erros e da evidenciação da impossibilidade de estar sozinho e "ser feliz”, o ridículo assumido pela tríade palhaça pode, ao contrário de prognósticos apressados que venham preocupar-se com “maus exemplos que essa extirpe de personagens possa representar a uma criança”, tende a baixar expectativas irreais e deflagrar as postagens felizes das redes sociais como deformações mais vertiginosas que aquelas que podem nos aterrorizar no teatro. Essa função descortinadora da arte tem um quê de inovação das formas tradicionais, cujo caminho de assumir as palhaças e palhaços como patrimônio imaterial, legado de conhecimento e de manifestação — que é quando determinado fenômeno se dá em sua plenitude de aparição — trata-se de um ato de resistência e de possibilidades de um devir coletivo, relacional... Parafraseando João Cabral de Melo Neto, constituindo um tecido como tenda que se eleva, como luz balão, a iluminar e guiar processos de criação. O público que lotou a sessão do 45° Feste no Teatro Galpão na noite de sábado, reconheceu, por meio das palavras colhidas, assim como pelas falas, durante o bate-papo coordenado por Mauro Moraes, também com presença do mestre Alexandre Mate (que também produziu texto a respeito), a potência da elaboração atoral feita pelo coletivo, tornando os momentos vivenciados repletos de experienciação viva e contundente, prenhe de significados que serão reverberados em quem esteve presente na noite ilícita, que nos permitiu gargalhar coletivamente e expurgar um tanto de dores acumuladas por tempos sombrios que “havemos de atravessar”.

 

Show de Variedades Ilícitas: um espetáculo surpreendente que mostra o avesso real do show da vida

Por Alexandre Mate.

 

Em um determinado momento de sua trajetória e de acumular tantas acusações de que seus textos seriam muito pobres, primários, violentos, grotescos, destituídos de “espírito mais elevado”, o mestre Plínio Marcos, absolutamente despreocupado com tais apreensões, teria respondido algo próximo a “[...] não tenho culpa de o mundo ser a merda que é e a pobreza se ampliar, incessantemente”. Trata-se de uma resposta objetiva e certeira àqueles que impõe rótulos e pensa o mundo a partir de determinados padrões consagratórios por certo e ideológico estrato social. De fato, quem tem detido o poder no mundo transformou a existência naquilo que se vive e se vê: lixo por toda a parte, destruição por todos os lados, violência em todas as camadas. Se a linguagem teatral, além de emocionar, por meio da beleza estética, tem também uma função histórico-social de contar/ mostrar/ manifestar seu tempo, é evidente que nas criações existente existiram artistas que fizeram e farão parte do coro dos “deixa pra lá” (atitude sempre confortável) e artistas que sentem firmemente que têm de enfrentar seu tempo, riscar o chão... sem os chamados eufemismos suavizadores do viver. Calar representa conivência, no mínimo. A vida é cruel! As relações sociais instauram-se por meio de todo tipo de violência, de luta, principalmente aquelas decorrentes das classes historicamente antagônicas. Enquanto houver injustiças sendo praticadas contra a humanidade, afirmou um filósofo, nem os mortos estarão sossegados. O espetáculo Show de Variedades Ilícitas segue o surpreendente solo Animo Festa, criações do genial Marcio Douglas: com tais obras nascia, depois de décadas de preparação, o palhaço Klaus. Do ponto de vista artístico, assisti ao nascimento de Marcio Douglas. Havia naquele permanentemente inquieto e serelepe jovem uma volúpia pela vida: Marcio me parecia um filho de Oscarito, de Grande Otelo, de Dercy Gonçalves... Era sempre prazeroso “testemunhar” as tiradas, as sacadas, as rapidezes, as genialidades de Marcio. Em presença do, então, interessado e estudante de teatro, era próximo do impossível permanecer fechado, quieto, sério... Marcio era um presente de alegria embrulhado para a vida. O espetáculo assistido na noite de sábado, no Teatro Galpão, inserido na 45a edição do Festival Nacional de Teatro de Pindamonhangaba – Feste (2024), foi arrebatador! Sentei-me ao lado da queridíssima Simone Carleto, amiga com a responsabilidade, no evento, de escrever as críticas dos espetáculos adultos. Simone ria de modo a se contorcer na poltrona! Em tese, ao se tomar o título conferido à obra, assim como já ocorrera em Animo Festa, por meio da obra se acessaria um portal de ilicitudes que, no caso do palhaço Klaus, promoveria a entrada em um território de transgressão, de denúncia, de exposição de verdades. No reino “klaunesco” das ilicitudes, a estrutura da obra tomaria o teatro de variedades, em cuja origem estavam os/as artistas populares a existir e a denunciar as atrocidades das classes dominantes da vez! Portanto, tendo em vista a tradição, retomando Plínio Marcos, a violência não se encontra em quem reage, mas e verdadeiramente, precisa ser buscada e tributada a quem promove este estado de coisas! Em Show de Variedades Ilícitas Klaus não veio sozinho: Klaus trouxe consigo a irreconhecível Adriana Marques. Muitas obras assistidas da atriz, mas a “tornozelada” Bernardete está arrebatadora. A atriz com sorriso sempre lindo e comovente, permaneceu com uma máscara facial próxima ao desdém, todo o tempo... Nunca a vi tão linda e em plenitude! Renato de Sousa Júnior, o “volumoso” (alusão ao pênis marcado na calça colada), estava hilário. Renato pouco falava, mas fez rir ao paroxismo. Voltando à obra, e como do teatro de variedades, a forma migrou para a estrutura revisteira, Klaus apresenta o prólogo e as personagens com as quais contracenará. Na condição de um mestre de cerimônia, absolutamente bufonesco, a personagem criada por Marcio Douglas imprime outra função ao palhaço Klaus e faz seu charlatanismo “nadar de braçadas”. Ao longo do rapidíssimo espetáculo (obra tão boa que se gostaria de muito mais tempo... egoístas que somos, alguns e algumas de nós), diversos números teatrais, retomando algumas das características das variedades de da forma revisteira, são apresentados. Magia, coreografias, cantos esquetes, relação real e permanente com o público... Camadas de representação criadas a partir de diversas linguagens, nas quais os episódios em justa/sobreposição apresentam o mundo às avessas, de cabeça para baixo, real, sem eufemismos suavizadores. Possivelmente de tais episódios, e se se fosse capaz de perguntar, tenderia a vir à tona uma indagação segundo a qual a questão central pudesse estar contida na indignação: com quantos graus de ironia e de sarcasmo é preciso mostrar o mundaréu do viver!? Fundamental retomar: Show de Variedades Ilícitas é obra grotesca, mas a violência é do mundo atual. Durante o debate ocorrido logo após o espetáculo, indagado sobre as influências para criação de Klaus, Marcio apresenta alguns nomes (que não guardei!), mas, e desde Animo Festas, trago as imagens do filme Laranja Mecânica (1971), dirigido por Stanley Kubrick; algumas e essenciais obras de Pier Paulo Pasolini, com destaque a Saló ou 120 Dias de Sodoma; Apocalipse Now (1979), dirigido por Francis Ford Coppola e interpretado por Marlon Brando... Pessoas e personagens do mau são fruto de sociedades doentes. Das tantas qualidades da obra, aquela que fica martelando e martelando e martelando, do ponto de vista do recorte temático, refere-se aos expedientes de que os artistas populares (e os humanos também) têm de lançar mão para conseguir sobreviver contra os reais dragões da maldade.

Fotos: Beto Assém e Gabriel Rachid

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